Remédios são eficazes, mas outros tratamentos podem ser necessários
Essa teoria vigorou por muito tempo, desde que a indústria farmacêutica descobriu que os remédios que reduziam os sintomas de depressão e ansiedade, por exemplo, aumentavam os níveis de alguns neurotransmissores no cérebro: em geral serotonina, dopamina e noradrenalina. Em outras palavras, a eficácia do tratamento foi usada para explicar o problema de forma mais simples. Essa definição ainda se perpetua no senso comum, mas pode ser prejudicial.
Mas espera: por que falar disso agora? Bem, não há nenhuma novidade bombástica sobre o tema, mas uma sequência de tuítes do professor Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, causou alvoroço nesta semana. Sob o título "O mito do desequilíbrio químicoico como causa das doenças mentais", o doutor em psiquiatria explicou que os transtornos mentais não são comprovadamente causados pela carência de determinadas substâncias no cérebro, como se costuma acreditar. É muito (muito, sério, muito) mais complexo do que isso.
De onde veio essa ideia, então? A hipótese monoaminérgica, termo técnico que descreve a ideia de que os transtornos são causados por desequilíbrio químico, vigorou por muito tempo e ajuda a simplificar a explicação para nós, o público leigo, além de contribuir com a adesão ao tratamento. Isso porque a hipótese surgiu a partir de bons resultados com remédios, explica Tófoli. "Descobriram que existem remédios que melhoravam os sintomas da depressão. Depois, descobriram que eles agiam aumentando serotonina, dopamina e noradrenalina", afirma o psiquiatra. Foi natural juntar "dois mais dois" e chegar à conclusão de que a causa dos transtornos seria, então, a falta desses neurotransmissores no cérebro. O problema é que não há comprovação alguma disso.
Repete e melhora? Vamos a uma comparação: pense que você quebrou um braço e o médico te deu morfina no hospital. A dor não foi causada pela falta de opioides no corpo, certo? Mas, mesmo assim, a morfina fez a dor diminuir. Apesar de ainda não conhecermos exatamente as causas da depressão e da ansiedade, já conhecemos algumas opções de tratamento dos sintomas com psicofármacos comprovadamente eficazes.
Mas, se não é o desbalanço químico, então qual a causa? A resposta é anticlimática: ainda não sabemos. Depressão, ansiedade e outros transtornos psiquiátricos são multifatoriais, a soma de fatores pessoais, biológicos e ambientais. Não há um exame de sangue que possa identificá-los. Tófoli resume: "O diagnóstico é clínico. Tem que conversar com o paciente".
Ué, mas se os remédios funcionam... Sim, funcionam mesmo. Aliás, o próprio Tófoli defende o uso deles no tratamento. Mas é essencial que paciente e psiquiatra construam um tratamento que vá além dos fármacos, e inclua psicoterapia e outras abordagens. O psiquiatra Rodrigo Martins Leite, coordenador de relações institucionais do Instituto de Psiquiatria do Hospitais das Clínicas da USP, defende que a mudança no estilo de vida do paciente seja uma das prioridades. "Caímos na real de que não existe uma constante biológica tão clara quanto gostaríamos. Então precisamos sim de exercício físico, meditação, contato social, relações pessoais com afeto... A medicação pode ajudar, mas definitivamente não resolve o problema da existência humana", reflete. Estudos sugerem inclusive que mudanças na alimentação podem ser benéficas, principalmente quando levamos em conta evidências recentes de que a depressão pode ser um processo inflamatório. Mas, de novo: é difícil explicar transtornos psiquiátricos com apenas um fator.
Por que tanta gente acredita em uma hipótese ultrapassada? Antes de mais nada, a hipótese do desequilíbrio químico simplifica a explicação do médico para o paciente. "A teoria dos neurotransmissores é muito útil como ferramenta de trabalho, apesar de não conseguirmos mensurar [os níveis de químicos no cérebro] e bater o martelo. A gente acaba usando essa explicação para motivar o paciente a aderir ao tratamento", explica Leite. Para justificar o uso de um remédio que vai mexer nos neurotransmissores x, y e z, é mais fácil dizer que há um problema com eles. Além disso, essa explicação ajuda a reduzir o estigma do tratamento ao apontar um "culpado". São reações químicas, é a biologia, e ponto.
E tem a indústria, sempre ela. Não dá para esquecer que essa teoria ajudou a psiquiatria a evoluir, ressalta Tófoli, e ainda ajuda os médicos na clínica. Mas é também do interesse da indústria farmacêutica vender uma solução pronta, e há estudos que apontam que os grandes laboratórios ajudaram a alardear essa ideia. A quem possa interessar, essa relação é explorada com mais detalhes neste artigo da revista Piauí assinado por Marcia Angell, que foi diretora de redação do New England Journal of Medicine (NEJM) e escreveu o livro "A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos" (publicado pela editora Record em 2007).
Ok, mas precisava ter mexido num tema tão delicado? Tófoli recebeu muitas críticas por ter tratado de um tema tão complexo no Twitter. Ele reconhece que algumas ideias não ficaram muito claras, como o fato de que ele não contesta a eficácia dos remédios. Ainda assim, o psiquiatra defende a importância de debater o tema, inclusive para que médicos e pacientes estejam sempre dialogando para definir e alterar o tratamento em conjunto, quando necessário. "O que funciona para uma pessoa não necessariamente funciona para outra. É preciso trabalhar para encontrar o arranjo adequado para cada um", afirma.
Fonte: TAB UOL
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