segunda-feira, março 02, 2020

Seu burnout não é culpa sua, mas é possível fazer algo a respeito


Duas décadas atrás, durante um momento ruim da minha residência, eu fui recebida por uma faixa no saguão do hospital que dizia: "Dia do Bem-Estar dos Residentes". O evento todo se resumiu à entrega de bolinhos grátis. Eu não precisava de um bolinho, eu precisava de um psiquiatra; eu precisava dormir; eu precisava de uma jornada de trabalho semanal com um limite razoável de horas. Eu estava sofrendo, e em resposta, o meu hospital... me oferece um bolinho. Aquela ação, somada a tantas outras falas e mensagens retóricas, me deram um recado claro: dar um jeito no meu burnout caberia a mim.

Pergunte a qualquer grupo de estudantes de medicina, residentes ou médicos: "O que você está fazendo para evitar ou dar um jeito no burnout?", e você provavelmente se verá em meio a um acalorado debate. As pesquisas existentes sobre o burnout entre médicos indicam de forma esmagadora que os fatores organizacionais são as principais causas de surgimento do quadro. A formação médica expõe os alunos a situações que carecem de o mínimo de amparo psicológico e, como resultado, muitos de nós sofrem danos emocionais importantes. Portanto, não surpreende que a gente sinta raiva quando nos perguntam quais medidas nós estamos tomando para corrigir um problema causado por terceiros. É como se alguém nos jogasse na fogueira e depois perguntasse o que estamos fazendo para não nos queimarmos.

Mas, a nossa indignação com essa alocação equivocada de culpa pode nos impedir de aceitar e tomar medidas que podem realmente nos ajudar. Não estou falando de ofertas absurdas, como aulas ocasionais de ioga ou um pedaço de bolo. Além dessas patéticas tentativas homeopáticas de promoção do bem-estar, existem ações importantes que podemos adotar para ajudar a nós mesmos. Eu sei, porque encontrei algumas que tiveram um grande impacto na minha vida.

Cuidar da cabeça

A primeira coisa que podemos fazer para ajudar a nós mesmos é aprender a ter mais consciência de nossos padrões de pensamento e emoções associadas, e de como reagimos a eles. Na época que éramos estudantes de medicina, normalmente não nos ensinaram estratégias cognitivas úteis para combater pensamentos pouco adaptativos, porque nossos professores e líderes geralmente não têm essas habilidades. Se você pensar nessas estratégias da maneira que pensa em qualquer outra habilidade altamente técnica, faz sentido que você precise procurar pessoas com conhecimentos especializados para ensiná-las a você.

A meditação para a atenção plena (mindfulness) é um caminho para o desenvolvimento dessas habilidades. Estou ciente de que meditação é uma palavra "gatilho" para muitos estudantes de medicina, residentes e médicos. As pessoas comparam essa prática a um colete salva-vidas para alguém que está se afogando. Um problema comum no treinamento da atenção plena é que as primeiras experiências de muitas pessoas são muito breves, de baixa qualidade ou não são adaptadas aos contextos clínicos. Talvez a nossa atitude em relação à meditação fosse melhor se tivesse outro nome, como "treinamento de autorregulação e conscientização sobre o entorno para situações clínicas de alta carga cognitiva", porque é isso que a meditação de fato é.

Pessoalmente, eu treinei em um programa baseado em evidências, publicado no periódico JAMA, criado e aplicado por médicos, oferecido pela University of Rochester School of Medicine and Dentistry, nos Estados Unidos. Isso me ensinou como a atenção plena, a autorregulação e o aumento da autoconsciência podem ser aplicadas a todo momento na prática clínica. Essas habilidades me ofereceram uma maneira de lidar com algumas das minhas emoções mais difíceis. Como resultado, o programa não só me fez uma médica mais feliz e melhor, mas também uma melhor administradora. Estou mais preparada para trabalhar nessas condições sistêmicas condenáveis e abusivas, e ainda promover a mudança para outras pessoas.

Para ser clara, os gestores que incentivam seus médicos ou alunos a praticarem a atenção plena não estão livres de precisar abordar as causas primárias do burnout. No entanto, solicitar que alunos e médicos deem este passo como parte de uma estratégia maior é um reconhecimento de que ações e comportamentos individuais são parte constituinte da cultura institucional. A Gold Foundation é um exemplo de instituição que oferece treinamento em meditação para faculdades de medicina.

Depois de trabalhar na conscientização de nossos padrões de pensamento, o segundo passo é ser capaz de se valorizar. O Dr. Mickey Trockel, Ph.D., médico, descreve a capacidade de se valorizar como o ato de "priorizar o próprio bem-estar e a mentalidade de crescimento tendo em vista as próprias imperfeições". O Dr. Mickey descobriu que os médicos que atingem as pontuações mais altas nos indicadores de valoração pessoal têm menos risco de burnout. O diálogo interno rigoroso é um exemplo de um hábito disfuncional que é ensinado aos estudantes de medicina. Aprender a se enxergar e falar consigo com a mesma empatia construtiva e mentalidade de crescimento com que você enxerga e fala com um amigo próximo, é uma forma de melhorar a sua capacidade de se valorizar.

Uma estratégia concreta para desenvolver essa habilidade é descrever eventos e sentimentos difíceis na terceira pessoa. Por exemplo, em vez de uma autocrítica do seu próprio desempenho, você pode dizer para si mesmo na terceira pessoa: "Sarah conduziu bem um caso muito difícil. Ela nunca lidou com um paciente como esse antes e se sairá melhor da próxima vez." Essa técnica pode ser útil para lidar com emoções que podem rapidamente se tornar pouco adaptativas, como vergonha, culpa e a sensação de ser um impostor. Tente usar essa estratégia com colegas de classe e amigos quando eles estiverem presos em um ciclo de autorrepreensão, e peça que eles tomem nota de como se sentem antes e depois.

Novamente, essa não é uma validação da teoria de que somos, de alguma forma, culpados por nosso burnout. É uma estratégia prática para desenvolver uma capacidade que tem se mostrado protetora e que pode oferecer benefícios em qualquer ambiente clínico.

Também é importante cuidar do corpo

Embora as práticas para fortalecer a mente sejam fundamentais, cuidar do corpo é igualmente importante. Continuo me dedicando a uma intensa busca e adoção de orientações de saúde voltadas especificamente para os médicos. Em essência, tento pensar no meu corpo como uma máquina médica complexa e especializada. Como o Dr. Mickey disse, este é o "instrumento da prática clínica" mais importante.

A Dra. Maryam Hamidi, Ph.D., publicou extensas informações nutricionais específicas para médicos. Um de seus trabalhos de pesquisa demonstrou qual o momento ideal para evitar comer durante o plantão noturno, a fim de diminuir os efeitos negativos da sonolência. Outras pesquisas correlacionaram desidratação com comprometimento cognitivo leve.

Nos familiarizarmos com esse tipo de literatura dificulta a adoção de normas culturais que nos encorajam a negligenciar as nossas necessidades básicas. Mais uma vez, o sistema é o maior culpado, e tenho plena consciência de que a autonomia na faculdade de medicina e na residência costuma ser muito limitada. No entanto, quando eu era aluna, meus próprios impulsos iniciais de ignorar as necessidades físicas também tiveram origem nas minhas atitudes e crenças pessoais em relação ao autocuidado. Este é mais um exemplo de como o desenvolvimento de insight sobre meus padrões de pensamento permitiu que eu cuidasse de mim de uma maneira que afetou a minha qualidade de vida e o atendimento que presto aos meus pacientes. Pequenas mudanças se somam, e podemos nos beneficiar delas, independentemente de estarmos trabalhando em um ambiente tóxico ou saudável.

Eu acredito no seguinte: Se acharmos que a única solução para resolver o problema do burnout dos médicos é consertar o sistema, corremos o risco de internalizar a ideia de que todas as soluções estão totalmente fora do nosso alcance. Nesse momento, perdemos nosso poder de ação. Não se trata de deixar organizações e instituições se safarem da responsabilidade de fazer a parte delas em lidar com os principais motivadores do burnout, trata-se de fazer o que pudermos para nos ajudarmos.

Mais de três anos depois de fazer um verdadeiro esforço para aprender a incorporar a meditação à minha vida clínica, notei uma diferença significativa. Percebo que estou mais plenamente presente com pacientes e colegas, e mais receptiva à uma complexa gama de emoções que sinto durante um dia de trabalho normal. Trato a mim e aos outros com mais compaixão. Agora também ensino práticas de meditação para estudantes de medicina, professores e lideranças em todo o país, como uma das muitas estratégias que adotei.

O sistema deve mudar, e devemos trabalhar para identificar e praticar estratégias importantes de bem-estar, como se nossas vidas dependessem disso. Porque eu acredito que elas dependem. Portanto, quando alguém lhe oferecer um pedaço de bolo como forma de curar o burnout, fique à vontade para rejeitá-lo, mas não rejeite a ideia de que existem coisas que você pode fazer para tomar conta do seu bem-estar.

Dra. Jillian Horton é médica, vice-chefe do Departamento de Medicina Interna, diretora do Alan Klass Program in Health Humanities e ex-vice-reitora de assuntos acadêmicos de graduação da University of Manitoba, no Canadá. Ela é membro da coorte de 2019 da Stanford University Chief Wellness Officer e é capacitada em meditação para a atenção plena pela University of Rochester School of Medicineand Dentistry. Suas memórias sobre medicina e educação médica serão publicadas pela Harper Collins Canada, em fevereiro de 2021.

Fonte: Medscape

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