Primeira publicação a relatar o mundo do overuse e seu impacto na vida de suas vítimas: os pacientes
O IV Fórum Hospitais Compliance – I Meeting Brasil Estados Unidos sobre Overuse vai marcar o lançamento oficial na América Latina do Livro The Treatment Trap (A Armadilha do Tratamento), da autora americana Rosemary Gibson.
A obra original The Treatment Trap, que terá agora a sua versão em português, é um relato impressionante sobre a ação de médicos aéticos que fizeram da medicina americana um espaço para cometer crimes contra a saúde de seus próprios pacientes. Fruto de uma pesquisa minuciosa, que durou mais de cinco anos, A Armadilha do Tratamento é a primeira publicação do gênero no mundo a relatar o submundo das cirurgias desnecessárias e o impacto da não conformidade na vida de vítimas do overuse. Com mais de 50 mil exemplares vendidos nos EUA, desde o seu lançamento, a obra rendeu a Rosemary a distinção Alvarez Award, da American Medical Writers Association (AMWA). É um dos maiores prêmios destinados a líderes que fizeram contribuições relevantes para o campo da comunicação médica.
Segundo a AMWA – Associação Americana de Escritores Médicos, em tradução livre –, Rosemary tem dedicado sua carreira para dar voz aos pacientes e ao interesse público em questões críticas de cuidados de saúde nos Estados Unidos nas últimas décadas. O seu trabalho tem melhorado a qualidade de vida de um número incontável de pessoas no fim da vida e de suas famílias, além de ter contribuído para melhorar a segurança dos cuidados que os americanos recebem durante todo o curso de suas vidas.
A Armadilha do Tratamento terá tiragem de dois mil exemplares. O livro será distribuído no IV Fórum Hospitais Compliance – I Meeting Brasil Estados Unidos sobre Overuse e enviado a lideranças da saúde pública e privada, governos, judiciário, ministério público, médicos e entidades representativas da categoria (CRM’s, CFM, AMB’s etc).
O evento vai ocorrer no dia 30 de novembro, no World Trade Center, em São Paulo.
Fonte: Fórum Hospitais Compliance
Jornalista americana denuncia fraudes no sistema de saúde dos EUA. Quase um terço dos US$ 2,6 trilhões gastos com saúde anualmente pelos EUA provém de não conformidades.
Ao recolher material para um livro sobre erros médicos, a jornalista e escritora americana Rosemary Gibson se deparou com algo muito mais assustador: casos em que hospitais e profissionais de saúde aplicam deliberadamente procedimentos médicos que podem levar os pacientes à morte com o objetivo de conseguir dinheiro público para as instituições a que estão subordinados. Um único hospital americano chegou a inserir cateteres em 580 pacientes que não precisavam de intervenções cirúrgicas.
A Associação de Medicina dos Estados Unidos classificou atos como esse de "tratamento excessivo", do inglês overuse - procedimento médico que traz mais riscos à saúde dos pacientes do que benefícios. Rosemary também revela casos em que os próprios médicos são beneficiados pelas fraudes no sistema. "Os conflitos entre o interesse do paciente e dos prestadores em fazer dinheiro são maiores do que nunca", acredita a escritora, cuja pesquisa sobre erros médicos a inspirou a escrever o livro A Armadilha do Tratamento, do inglês The Treatment Trap - ainda sem tradução no Brasil.
Segundo ela, há estimativas de que 30% dos US$2,6 trilhões gastos anualmente no sistema de saúde americano são desperdiçados em procedimentos desnecessários, assim como nas ineficiências do sistema e em fraudes. "Um problema que não é apenas dos Estados Unidos, mas de muitos outros países", conclui Rosemary.
A senhora já foi vítima, alguma vez, do overuse?
Rosemary Gibson - Não, nunca fui vítima de tratamento excessivo. Sempre que vou ao médico, levo uma cópia de A Armadilha do Tratamento. Na verdade, eu costumo ir a médicos atenciosos e nós discutimos as evidências sobre o que funciona e o que não funciona. Essa é uma conversa que todos os pacientes deveriam ter com o médico. Eu me envolvi com esse tema por uma série de razões. Estava escrevendo um livro sobre erros médicos, Wall of Silence (Muro do Silêncio). Muitos dos pacientes que eu ouvi tinham sido vítimas de erros médicos, enquanto haviam se submetido a cirurgias desnecessárias. Também lembro de um jantar que tive há 12 anos com um proeminente médico, que falou enfaticamente sobre a quantidade de danos provocados pelo tratamento excessivo. Ele nunca diria tais coisas publicamente. Então comecei a pesquisar o tema e encontrei artigos na literatura médica sobre o uso excessivo de cirurgias de coluna, histerectomia, cirurgia de ponte de safena e outros procedimentos invasivos em que os riscos superavam de longe os benefícios. Entrevistei os médicos e as respostas foram extraordinárias. O ex-presidente de um hospital internacionalmente conhecido, por exemplo, fez o seguinte relato: ?Meu Deus, isso está em todo lugar?. Escrevi o livro porque o público tem o direito de saber o que médicos e outros profissionais de saúde já sabem. Eles não devem cair na armadilha do tratamento.
O Hospital Mayo apontou em um estudo que 40% das cirurgias que foram indicadas para seus pacientes por médicos de outras unidades eram desnecessárias. Quanto os Estados Unidos gastam a cada ano com procedimentos médicos que não precisam ser feitos?
Rosemary - Não sabemos exatamente qual a extensão dos tratamentos médicos inapropriados. Portanto, é difícil avaliar custos. O Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências dos EUA estima que 30% dos US$ 2,6 trilhões gastos no sistema de saúde são desperdiçados em tratamentos desnecessários, assim como nas ineficiências do sistema e em fraudes. Aparentemente, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos tem aumentado a sua atenção ao tema e processado médicos que realizam cirurgias desnecessárias, especialmente procedimentos cardíacos. Ainda assim, os processos são relativamente raros. Os executivos dos hospitais usualmente não são implicados.
Explique a expressão ?monstro verde?, que a senhora apresenta no seu livro A Armadilha do Tratamento?
Rosemary - O termo ?monstro verde? foi usado por um médico muito ético que eu entrevistei. Ele estava citando um amigo, também médico, que explicou as razões pelas quais colegas seus haviam feito uma cirurgia de dupla reconstrução do ligamento cruzado em um homem que tinha doença vascular periférica nas pernas e nunca deveria ter sido submetido à cirurgia. O paciente morreu de um ataque cardíaco logo após o procedimento. Os médicos disseram ao colega ético: ?Você não viu o monstro verde??, referindo-se ao dinheiro ? a nota do dólar é verde. O médico ético ficou
atormentado com essa experiência.
Como as associações americanas representativas dos médicos se posicionam em relação ao overuse?
Rosemary - Médicos éticos não permitem o tratamento excessivo. As declarações de princípios da categoria dizem que um médico nunca deveria colocar os pacientes em uma situação em que os riscos excedem os possíveis benefícios. O Instituto de Medicina (correspondente ao CRM, no Brasil), em assembleia, definiu o overuse como uma situação em que o potencial de dano em um procedimento de cuidados médicos supera os seus possíveis benefícios. Ainda assim, a ética médica é ignorada muito frequentemente e é por isso que esses problemas existem não apenas nos Estados Unidos, mas no Brasil e em muitos outros países. Sob os auspícios do Fórum Nacional de Qualidade ? órgão que fiscaliza a qualidade do serviço médico americano ?, um grupo identificou as cirurgias e exames que são conhecidos por serem usualmente adotados sem parcimônia. As cirurgias mais recorrentes que eles identificaram foram cirurgia da coluna, de ponte de safena, histerectomia, prostatectomia e cesarianas. Recentemente, tentei encontrar esse relatório no site do Fórum Nacional de Qualidade, e a informação não estava mais lá.
Seu livro tem como público-alvo preferencial o usuário do sistema. O paciente tem poder para intervir nesse processo?
Rosemary - Em algumas instâncias, absolutamente sim. Encontrei uma quantidade de pessoas bem informadas que declinaram das recomendações de tratamento feitas pelos seus médicos, não de forma espontânea, mas muito cuidadosa. Talvez pela primeira vez na história da medicina temos um subconjunto da população que está dizendo ?não? às recomendações médicas porque eles acreditam que não vão estar melhores, mas sim piores. Em economia, isso se chama retorno decrescente. Falei com um grupo de legisladores estaduais no verão de 2012. Depois, um deles veio até mim e disse que vai ao médico a cada três meses para fazer um raio-x do peito. Perguntei se ele tinha uma condição médica subjacente. Disse-me que não. Eu tinha falado durante o encontro sobre a exposição à radiação emitida pelo equipamento e como esses exames deveriam ser feitos apenas quando necessários. Ele disse que ia perguntar ao médico se realmente precisava daqueles exames. Esse cidadão provavelmente nunca pensou na exposição à radiação. Aposto que nunca mais vai fazê-los.
Os médicos americanos costumam argumentar que solicitar um número grande de exames é uma forma de se precaver contra eventuais processos judiciais, caso sejam acusados de omissão, por exemplo. Pode comentar?
Rosemary - Médicos cautelosos realizam exames que acreditam ser desnecessários por causa do temor de processos. O medo de ser processado, contudo, não explica a realização de cirurgias, implantação de pontes de safena, cateterismo. De fato, médicos estão sendo processados por terem realizado esses procedimentos. Um médico que trabalhou em um hospital não muito longe de Washington D.C. foi processado por inserir catéteres desnecessariamente em 580 pacientes.
Como seu livro repercutiu no mercado de saúde americano? Em algum momento se sentiu constrangida por parte da indústria ou pelos médicos?
Rosemary - O tema do excesso de tratamento não é bem recebido por aqueles que dependem da renda proveniente do excesso de tratamento dos pacientes. Entretanto, o clima mudou. Se há dois anos era difícil até abordar o tópico, agora eu posso ir a encontros e falar sobre excesso de tratamento com muita liberdade. Solicitaram que eu falasse no Encontro Nacional sobre Excesso de Tratamento, realizado no último mês de setembro, sob o patrocínio da Associação Médica Americana e da Joint Comission. O fato de ter acontecido um evento dessa magnitude mostra como a maré virou. Dito isso, o desafio de falar sobre excesso de tratamento ainda permanece. Afinal, o débito que os Estados Unidos têm no orçamento federal e os gastos com o sistema de saúde são o principal fator de endividamento. O Congressional Budget Office (escritório de orçamento do Congresso Americano) estima que, se continuarmos nesse ritmo, em 2082 os Estados Unidos vão gastar todo o PIB com o sistema de saúde. O único lugar razoável para fazer os cortes é o excesso de tratamento, onde não estamos agregando valor à saúde do paciente. A principal razão para fazermos isso, entretanto, é que pessoas estão sofrendo danos por conta de cirurgias e exames desnecessários.
Segundo um trabalho publicado no Jama (jornal da Associação Americana de Medicina) em 2000, o ato de pagar uma viagem para um profissional aumenta entre 4,5 e 10 vezes a possibilidade de ele receitar as drogas produzidas pela patrocinadora. Esse marketing é legítimo?
Rosemary - Muitos estudos mostram que os médicos que recebem dinheiro das companhias são influenciados por esses pagamentos na hora de tomar decisões. As grandes e antigas tradições da medicina chamam os médicos a ter o interesse do paciente como o principal e único propósito. Agora passamos a ter conflitos de interesse.
Pela sua experiência, a senhora arriscaria dizer a porção de médicos americanos que praticam tratamento excessivo nos Estados Unidos?
Rosemary - Certa vez, um médico de grande reputação, disse-me durante um jantar que um terço das pessoas que estão na medicina continuam trabalhando por que essa é a sua vocação; um terço por causa do dinheiro e outro terço está pensando em abandonar a carreira porque está cansado de ver os colegas prescreverem procedimentos médicos desnecessários para os seus pacientes. O excesso de tratamento chegou a ser mencionado em um discurso há sete anos pelo presidente Obama (então senador), mas nunca mais isso foi mencionado em público.
Muito se fala nos conflitos de interesse com ênfase nas atitudes dos médicos. Mas não deveria haver um maior rigor também com a postura ética dos hospitais?
Rosemary - É difícil. Há algumas clínicas e hospitais que só visam ao lucro e nunca ao paciente. Você sabe o quão terríveis eles podem ser? Nos Estados Unidos há um programa de atendimento específico para pessoas em estado terminal (End of Life Care). Essas pessoas não serão curadas, mas têm direito a passar um tempo, normalmente uns seis meses, internadas recebendo todo atendimento para que se sintam confortáveis. Há clínicas que, para receber o dinheiro do governo, matriculam pessoas que não estão doentes, que não têm perspectiva de morrer. O 60 Minutes (programa de TV da rede americana CBS) mostrou como executivos de hospitais são constantemente pressionados a admitir pacientes idosos para suas unidades mesmo quando não há necessidade médica. Entrevistei um médico para o A Armadilha do Tratamento. Segundo ele, o diretor financeiro do hospital onde ele trabalhava disse que, se ele e os seus colegas pudessem admitir um paciente a mais por mês, o hospital estaria em uma situação financeira mais sólida. Que pessoa quer ser esse indivíduo adicional e ser internado em um hospital? São lugares assustadores. Isso mostra o quanto perdemos a nossa bússola moral.
Em busca de transparência, os Estados Unidos dispõem de uma lei que obriga as indústrias a informar quais são os médicos que lhes prestam consultoria e quanto eles recebem. Além disso, há iniciativas como o site ProPublica, em que qualquer cidadão pode consultar quanto um médico recebeu de um fabricante qualquer. Até que ponto isso tem funcionado?
Rosemary - A transparência na informação sobre o dinheiro que os médicos recebem das companhias é uma coisa boa. Mas agora há uma tendência de que mais médicos sejam empregados das companhias, que estão comprando consultórios médicos nos EUA. Os conflitos entre o interesse do paciente e dos prestadores em fazer dinheiro são maiores do que nunca. Isso jamais pode ser bom para o paciente, muito menos para o seu bem-estar.
Médicos brasileiros não éticos costumam associar a prática de overuse à baixa remuneração que recebem. Esse é um argumento aceitável?
Rosemary - Como observado, tratamento excessivo, para o Instituto de Medicina, é quando o potencial para dano de um serviço médico é maior do que o seu possível benefício. Nunca pode ser aceitável que um médico exponha os seus pacientes a riscos que excedam possíveis benefícios.
Por que é tão difícil punir um médico que age como ?sócio? de fornecedores, cobrando comissões para usar determinada prótese ou indicar um laboratório, por exemplo?
Rosemary - Os médicos podem fazer muito pelos seus pacientes. Um paciente que eu conheço descreve isso como a ?imunidade da reputação?, que deriva dos cuidados médicos. Pacientes querem médicos que sejam leais a eles e somente a eles.
Os defensores da saúde pública e gratuita acreditam que esse tipo de distorção é quase uma prerrogativa do modelo capitalista implantado na saúde. O que a senhora pensa a respeito?
Rosemary - Todo mercado precisa ser regulado. Os americanos não se importam que alguém ganhe muito dinheiro trabalhando duro. O que as pessoas não suportam é a fraude. Aqui há um conflito de interesses em um nível muito alto. As empresas têm um dever fiduciário primário com os seus acionistas, e os médicos, com os pacientes. Estas duas forças são conflitantes. O resultado é uma armadilha de tratamento em que muitos pacientes caem.
Diante de tudo o que foi exposto, a senhora tem esperança de que o seu livro possa mudar a realidade?
Rosemary - O primeiro passo para resolver um problema é falar sobre ele. Se permanece invisível, nunca vai ser corrigido. A boa notícia é que mais pessoas estão falando sobre os danos das armadilhas de tratamento. Não chegamos a este ponto da noite para o dia e vai levar, na mesma medida, um longo tempo para nos desenterrarmos. Pelo menos, há mais honestidade em torno do debate.
Há planos para lançar o seu livro no Brasil?
Rosemary - Eu gostaria muito que o livro fosse traduzido para que as pessoas no Brasil pudessem estar cientes deste fenômeno nos cuidados de saúde. Afinal, acredito que tratamento excessivo seja um problema crescente também em mercados emergentes. Editá-lo seria um grande serviço público ao cidadão brasileiro. Nos EUA, parte da renda com a venda da obra será doada para ajudar pacientes que tenham sido vítimas do overuse.
Fonte: Humana Saúde (material modificado)