segunda-feira, junho 10, 2013

Você tem fome de quê? Revista Psique Ciência & Vida

Apesar das questões genéticas serem uma das causas da obesidade infantil, alguns estudiosos do campo da Psicossomática refletem sobre o papel do estresse pré-natal no aumento do risco de obesidade na infância

Por Armando Ribeiro das Neves Neto


"A gente não quer só comer A gente quer prazer Pra aliviar a dor..." (Titãs)

A prevalência da obesidade infantil vem sendo considerada uma epidemia mundial, sendo um grave problema de saúde pública de origem multifatorial, mas com uma forte associação ao estilo de vida e hábitos comportamentais promovidos por uma cultura de consumo exacerbado, alimentação fast-food e sedentarismo.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que cerca de 42 milhões de crianças abaixo dos cinco anos de idade estão obesas no mundo. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 30% das crianças estão acima do peso e 15% já são consideradas obesas.
Para a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), a mudança de comportamento é uma das formas mais importantes para a construção de uma saúde melhor, reduzindo doenças, incapacidades e morte prematura ao longo da vida. As estratégias preventivas baseadas na modificação do estilo de vida, através de intervenções psicossociais, cientificamente embasadas, podem controlar a expansão das doenças crônico-degenerativas, das doenças relacionadas ao estilo de vida e à saúde mental, lesões e violência. Ainda segundo a OPAS, o desenvolvimento infantil é um momento crítico para as intervenções educacionais e de saúde. Nos EUA, o Center on the Developing Child da Universidade de Harvard é um dos grupos de excelência no estudo do desenvolvimento infantil saudável, com pesquisas que se estendem da neurobiologia do desenvolvimento às políticas públicas.

Apesar dos diferentes critérios para o diagnóstico da síndrome metabólica, essa condição inclui: obesidade, hipertensão arterial, hiperglicemia, aumento dos triglicerídeos, dislipidemia e microalbuminúria

De acordo com o grupo de trabalho para os fatores psicológicos afetando condições médicas da Associação Americana de Psiquiatria, o problema mente-corpo ainda é uma das questões mais desafiantes para as ciências comportamentais e da saúde, embasadas em um ultrapassado modelo dualista. É primordial o desenvolvimento de um modelo biopsicossocial e salutogênico, que possa abarcar uma visão de saúde integrativa e mais humanizada. Movimentos na área da Medicina, Psicologia e demais ciências da saúde e Educação promovem o resgaste de práticas milenares que enxergam o ser humano de forma holística, atualmente denominadas por Medicina Integrativa, Medicina do Estilo de Vida, Medicina Comportamental e Psicossomática.

A prevalência da obesidade infantil vem sendo considerada uma epidemia mundial, sendo um grave problema de saúde pública

Apesar das questões genéticas serem uma das causas da obesidade infantil, alguns estudiosos do campo da psicossomática refletem sobre o papel do estresse pré-natal no aumento do risco de obesidade na infância. Poucos relatos são tão chocantes quanto o "Inverno da Fome na Holanda", no fim da Segunda Guerra Mundial.
Historiadores contam que os nazistas, ao se verem pressionados por todos os lados, e irritados pela ajuda dos holandeses aos aliados que vinham libertá-los, lançaram mão de uma das estratégias militares mais drásticas para a população civil: o corte de todas as linhas de abastecimento de alimentos. Segundo informações da época, crianças, adultos (incluindo as gestantes!) e idosos holandeses foram obrigados a passar muita fome por quase uma estação inteira, chegando a consumir menos de mil calorias por dia, com a ingestão de bulbos de tulipa e outros.

Principais sintomas de estresse infantil

SINTOMAS FÍSICOS 
DIARREIA
DOR DE BARRIGA
DOR DE CABEÇA
ENURESE NOTURNA
FALTA DE APETITE
GAGUEIRA
HIPERATIVIDADE
MÃOS FRIAS E SUADAS
NÁUSEAS
RANGER DOS DENTES
TENSÃO MUSCULAR
TIQUE NERVOSO
SINTOMAS PSICOLÓGICOS
INTROVERSÃO SÚBITA
TERROR NOTURNO
AGRESSIVIDADE
ANSIEDADE
HIPERSENSIBILIDADE
DIFICULDADES INTERPESSOAIS
PESADELOS
PREOCUPAÇÃO
IMPACIÊNCIA
INSEGURANÇA
DESOBEDIÊNCIA
MEDO OU CHORO EXCESSIVO


O resultado, após décadas do período "Inverno da Fome na Holanda", foi uma geração de crianças com um funcionamento alterado do metabolismo e com riscos elevados para a síndrome metabólica (obesidade, hipertensão arterial, hiperglicemia, aumento dos triglicerídeos, dislipidemia e microalbuminúria).
Se a mãe estivesse no primeiro trimestre da gravidez no período de restrição alimentar, aumentava o risco para o feto desenvolver doenças do coração, obesidade e colesterol; se a mãe estivesse entre o segundo e o terceiro trimestre da gravidez, o feto teria um risco elevado para diabetes.

A desnutrição fetal, segundo Barker, é uma das piores fontes de estresse, e que a cada trimestre da gestação pode afetar seletivamente o desenvolvimento físico e emocional para o resto da vida
Pré e pós-natal 
O epidemiologista David Barker do Hospital Southampton (Inglaterra) foi pioneiro nos estudos sobre a relação entre a desnutrição fetal e os riscos permanentes na saúde física e emocional. Suas observações levaram à criação doFetal Origins of Adult Disease (FOAD), a partir de um estudo longitudinal com dados de 13.517 participantes do Hospital Universitário de Helsinki, durante o período de 1924 a 1944. Para Barker e seus colegas, a desnutrição fetal é uma das piores fontes de estresse, e a cada trimestre da gestação pode afetar seletivamente o desenvolvimento físico e emocional para o resto da vida.
A literatura também reconhece que, além da desnutrição fetal, outros estressores psicossociais (ex. violência, pobreza e etc.) podem provocar consequências similares às registradas pelo FOAD. Os problemas mais comuns apresentados pelo estresse pré-natal incluem: síndrome metabólica, diabetes e a hipertensão arterial.


Relatos históricos contabilizam que aproximadamente 16 mil pessoas morreram de fome durante o "Inverno da Fome na Holanda"

Ainda segundo as conclusões do FOAD, é durante a gestação que o organismo do feto está reunindo informações sobre o meio externo, moldando seu funcionamento para o resto da vida. Uma gestação baseada na subnutrição poderá consolidar um metabolismo frágil, com um aumento da produção de glicocorticoides - hormônios do estresse, "ensinando" ao feto que o mundo externo é estressante, pois são sensíveis aos sinais psicofisiológicos do estresse materno.
Atualmente, o campo de estudo da epigenética busca pesquisar as interações causais entre genes e seus produtos que são responsáveis pela produção do fenótipo, sustentando o efeito de marcas herdadas na estrutura da cromatina passíveis de mudanças frente a estímulos intrínsecos e extrínsecos (ex. metilação do DNA, modificações pós-traducionais em histonas e etc. importantes reguladores da expressão gênica e da estabilidade genômica). Ao compreender os mecanismos que ligam os processos fisiológicos e do impacto de marcas epigenéticas aberrantes no desenvolvimento e progressão de doenças, os cientistas poderão contribuir para o desenvolvimento de novas terapêuticas, de prognóstico, diagnóstico e predição de resposta a tratamentos.

É importante ressaltar que os sintomas de estresse infantil podem ser diferentes dos observados em adolescentes e adultos

A importância do contato
Harry Frederick Harlow foi um psicólogo americano mais conhecido por seus experimentos de separação materna e isolamento social em macacos rhesus, que demonstraram a importância da prestação de cuidados e companhia no desenvolvimento social e cognitivo. Os críticos da pesquisa de Harlow observaram que o apego é uma questão de sobrevivência em jovens macacos rhesus, mas não em humanos, e sugeriram que suas conclusões, quando aplicadas aos seres humanos, superestimavam a importância do contato.
O estresse pós-natal também pode influenciar na obesidade infantil? Segundo o estudo de privação maternal e de contato realizada com macacos rhesus pelo psicólogo norte-americano Harry Harlow (1905-1981) da Universidade de Wisconsin-Madison, os efeitos do isolamento social foram devastadores para os pequenos macacos-bebês, com alterações deletérias nas dimensões cognitivas, afetivas e comportamentais.
Ainda conforme os estudos do médico e psicanalista infantil norte-americano René Spitz (1887-1974) sobre os efeitos do hospitalismo e da depressão anaclítica em crianças órfãs abandonadas em asilos no pós-guerra da II Guerra Mundial, a perda de interesse no meio circundante, a apatia, a diminuição do tônus motor, do comportamento alimentar, em alguns casos extremos de privação materna, levavam ao óbito, não pela falta de cuidados médicos ou de alimentação e, sim, pela falta da troca afetiva e do contato físico ou visual, uma vez que as crianças permaneciam um tempo considerável em berços e sem contato com adultos ou outras crianças.
Mas a investigação sobre o desenvolvimento infantil e a privação materna dá um passo adiante nos estudos do médico e psicanalista inglês John Bowlby (1907-1990) sobre a teoria do apego, que, além das teorias psicodinâmicas clássicas, buscava compreender o desenvolvimento psicológico infantil a partir das teorias evolutivas, em seu trabalho clássico sobre cuidado materno e saúde mental com crianças de rua na Europa pós-guerra para a OMS.
Atualmente, os estudos sobre a carga alostática avançam na discussão e entendimento de como o estresse crônico é capaz de desestabilizar ou mesmo destruir os recursos fisiológicos de adaptação, contribuindo para alterações graves no funcionamento de diversos sistemas (ex. eixo hipotálamo-hipófise-adrenal - HHA, fator de liberação da corticotropina - FLC, sistema noradrenérgico, hipocampo e amígdala, entre outros) relacionados ao aparecimento de doenças físicas e emocionais.
Hipótese de Barker
David Barker é um médico e professor de Epidemiologia Clínica da Universidade de Southampton, Reino Unido. Ele observou que havia uma relação entre o peso do recém-nascido e algumas doenças não infecciosas que aparecem na vida adulta, tais como doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, derrame cerebral e doenças endócrinas. O que parece acontecer é que, quando o feto ou o recém-nascido são confrontados com dificuldades - como deficiência de nutrientes ou de oxigênio, ou a combinação de ambos - ele optaria por sacrificar o seu potencial de crescimento, e isso parece modificar outras funções, como as relacionadas ao controle da pressão sanguínea.
Os estudos conduzidos por Harlow, Spitz e Bowlby resultaram em achados inequívocos sobre os papeis da qualidade da relação afetiva pós-natal com as consequências duradouras prejudiciais no desenvolvimento físico e psicológico dos indivíduos. "Você tem fome de quê?..." é uma forma de refletir sobre quais necessidades reais estão deficitárias no ambiente físico e emocional em que se desenvolvem as crianças, podendo gerar um comportamento alimentar inadequado, com o aumento do risco de sobrepeso e obesidade infantil.

Estresse familiar
Em um estudo publicado na revista Pediatrics, com a participação de 2119 pais e cuidadores de crianças na faixa de 3 a 17 anos concluiu que pais mais estressados tinham um risco maior de servir comida rápida (fast-food) e que seus filhos tinham mais risco de serem classificados com sobrepeso ou obesidade. Entre as principais fontes de estresse dos pais, incluiam: doença física ou emocional, problemas financeiros e ser mãe solteira. Ainda segundo os pesquisadores, ser mãe solteira (nesta amostragem) foi um dos fatores mais fortemente associados à obesidade infantil.
Para a médica nutróloga dra. Elizabeth Prout-Parks do Hospital Infantil da Filadélfia e líder do estudo, a quantidade e intensidade dos estressores familiares são fatores importantes para a obesidade infantil. Os pais decidirão sobre a compra de alimentos e sua preparação também baseados em seus estados emocionais e nível de estresse. Alimentos rápidos, tipofast-food, ricos em calorias "vazias", açúcares e gorduras, mas cheios de sabor, crocância e principalmente de fácil preparação, se tornam escolhas fáceis para os pais mais estressados, criando um hábito alimentar perverso, pois as crianças são ensinadas a buscar o alimento não apenas como fonte de saciação da fome, mas também para relaxamento e lidar com frustrações.

O alimento que deveria nutrir e capacitar a criança para uma vida plena e saudável acaba adoecendo o corpo

Pesquisa da International Stress Management Association - Brasil com 220 crianças, entre 7 e 12 anos de idade, mostrou que as principais fontes de estresse são crítica e desaprovação dos pais, excesso de atividades, bullying e conflitos familiares
É importante ressaltar que os sintomas de estresse infantil podem ser diferentes dos observados em adolescentes e adultos, tais como: problemas físicos sem causas aparentes (ex. alergias alimentares, queixas dermatológicas, infecções repetitivas - ouvido, garganta etc., alterações comportamentais desconectadas do ambiente (ex. excesso alimentar, brincadeiras agressivas, agitação comportamental), alterações emocionais (ex. humor irritável, impaciência, birra ou indiferença), cognitivas (ex. diminuição da capacidade de concentração, dificuldades com a memória, problemas escolares etc.), dentre outros.
Enquanto o impacto psicológico na obesidade infantil vem sendo objeto de estudo das ciências médicas e do comportamento humano, é fundamental refletir sobre a constatação crescente do aumento da obesidade nas crianças. O alimento que deveria nutrir e capacitar a criança para uma vida plena e saudável acaba adoecendo o corpo, a mente e as emoções. O perigo de associarmos brinquedos e heróis às marcas de fast-food é iludir as crianças, que consomem mais do que alimentos, mas valores culturais questionáveis e incertos. O excesso de açúcares, gorduras trans e outros aditivos alimentares também podem estar por trás das gerações de crianças hiperativas, desatentas ou desvitalizadas e sedentárias. Talvez o sucesso dos alimentos exageradamente intensos no sabor seja apenas uma substituição comportamental de segunda linha, para a falta de tempo e dedicação afetiva dos pais cansados pelas longas jornadas de trabalho, cronicamente estressados, e também vítimas de uma sociedade que alimenta frustrações e expectativas ilusórias.
No futuro, talvez os pais devam perguntar:
- Filho, você tem fome de quê?

REFERÊNCIAS
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STOUDEMIRE, A. Fatores psicológicos afetando condições médicas. Porto Alegre: Artmed, 2000.

Armando Ribeiro das Neves Neto é psicólogo, mestre em Ciências pelo departamento de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, especialista em Neuropsicologia pela UNIFESP, MBA em Saúde Ocupacional pela UNIFESP, aprimoramento em Psico-Oncologia pelo Hospital do Câncer A.C. Camargo e especializando em Bases da Medicina Integrativa pelo Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Coordenador do Programa de Avaliação do Estresse do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo. Especialista do programa Saúde Emocional do canal Bem Simples. Organizador do livro "Psicoterapia Cognitivo-Comportamental: Possibilidade em Clínica e Saúde" (Esetec). Website: www.armandoribeiro.com. E-mail:armandopsico@hotmail.com

Um comentário:

  1. Uma geração contra a balança - O sobrepeso e a obesidade são o quinto fator principal de risco de disfunção no mundo. Pesquisas mostram índices crescentes sobre a obesidade infantil. E esta não é apenas uma questão estética. Ela está relacionada a uma série de fatores físicos e psicológicos. Revista Psique Ciência & Vida.

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